A $LIBRA e Milei: uma exploração profunda de manipulação,desigualdade e consequências políticas
A promoção da criptomoeda LIBRA pelo presidente argentino Javier Milei transcendeu o escopo de um mero escândalo financeiro para se tornar um símbolo dos riscos inerentes à interseção entre política, tecnologia e o mercado de criptoativos desregulado.
Nas 48 horas seguintes ao lançamento do token, dados públicos da blockchain – o registro digital imutável que documenta todas as transações de criptomoedas – revelaram padrões de manipulação, concentração de riqueza e perdas devastadoras para investidores comuns, expondo falhas estruturais tanto no projeto quanto na conduta presidencial.
O episódio começou com um post de Milei no X em 14 de fevereiro de 2025, no qual ele vinculou sua imagem à LIBRA, apresentada como um instrumento de “liberdade financeira” alinhado a seus princípios libertários. O post, acompanhado de um QR code para aquisição imediata do token, funcionou como um sinal verde para milhares de apoiadores e especuladores. No entanto, a euforia inicial deu lugar a um cenário caótico: em questão de horas, a LIBRA atingiu uma valorização artificial de quase 5.000%, seguida por um colapso abrupto de 95%, deixando a maioria dos investidores com perdas irreversíveis.
Os dados da blockchain, analisados por especialistas como o argentino Fernando Molina (@fergmolina), oferecem uma radiografia detalhada da desigualdade gerada pelo esquema. Enquanto 62% das carteiras perderam entre US$ 1 e US$ 1.000 – valores que, embora modestos em escala global, representam economias pessoais devastadas em um contexto de crise argentina – , uma elite microscópica de 0,18% dos investidores lucrou mais de US$ 100.000,00.
Essa disparidade não é acidental, mas resultado de estratégias coordenadas. Por exemplo, uma carteira específica executou quatro compras simultâneas de US$ 250.000,00 (totalizando 1 milhão de dólares) no exato momento do tweet presidencial, utilizando bots – programas automatizados capazes de operar em milissegundos – para adquirir tokens a US 0,29 e vendê-los a US$ 4, lucrando US$ 8,5 milhões antes que o mercado reagisse.
Esse padrão, conhecido como front-running, envolve o uso de informação privilegiada ou velocidade algorítmica para explorar a assimetria de conhecimento, prática comum em rug pulls (golpes em que desenvolvedores abandonam um projeto após drenar seus recursos).
Paralelamente, investidores menos ágeis ou informados enfrentaram perdas catastróficas. Uma carteira, por exemplo, gastou US$ 5,2 milhões comprando tokens a US$ 2 cada, confiando no endosso presidencial, mas falhou em vender antes do colapso. Esse comportamento reflete uma dinâmica psicológica típica em esquemas de pump and dump: a crença de que a tendência de alta perdurará, alimentada pela autoridade de figuras públicas. A LIBRA, nesse sentido, operou como uma memecoin (criptomoeda sem nenhum propósito, sustentada somente por hype), mas com uma agravante: o respaldo de um chefe de Estado, cuja influência amplificou o alcance e a credibilidade do golpe.
A arquitetura técnica do projeto também revela falhas deliberadas. Dois endereços concentram 37% do total de tokens, e 50% estão “vesteados” (bloqueados) na plataforma Jupiter, supostamente para liberação gradual até 2027. No entanto, essa medida – apresentada como garantia de estabilidade – é ilusória: os desenvolvedores já retiraram US$ 87 milhões dos pools de liquidez (reservas que garantem a troca de tokens por moedas tradicionais), esvaziando o projeto antes mesmo de seu declínio público.
A desconexão entre a narrativa de descentralização e a realidade do controle centralizado é emblemática de um padrão recorrente em criptomoedas fraudulentas, onde a retórica de “democratização financeira” mascara estruturas hierárquicas e opacas.
O volume de transações, que atingiu US$ 1,5 bilhão no primeiro dia, evaporou rapidamente, refletindo a perda de confiança. A queda para US$ 0,0006 por token – um valor residual – transformou a LIBRA em um ativo tóxico, símbolo de um ciclo de especulação e abandono.
Esse fenômeno não é isolado: assemelha-se a casos como o token $TRUMP, associado a Donald Trump, que também sofreu colapsos após picos artificiais. Contudo, a dimensão política do caso argentino é singular. Milei, eleito com uma plataforma anticorrupção e pró-liberdade econômica, vê sua credibilidade corroída pela associação a um esquema que beneficiou uma minúscula elite tecnofinanceira em detrimento de cidadãos comuns.
As repercussões políticas são profundas. A oposição mobilizou-se para investigar ligações entre o governo e os criadores da LIBRA, incluindo Hayden Davis, um empresário que se autodenominou “assessor” de Milei.
Embora o presidente negue envolvimento direto, seu histórico de promoção a projetos não auditados – como a plataforma CoinX em 2021 – sugere negligência reiterada. A criação de uma Unidade de Investigação pelo próprio governo é vista com ceticismo, pois conflita com o discurso libertário de Milei, que tradicionalmente rejeita a intervenção estatal em mercados.
Para além das perdas financeiras, o caso expõe uma contradição ideológica central: a defesa de mercados totalmente livres, sem regulação, cria um ambiente fértil para a manipulação e a concentração de poder. Enquanto Milei argumenta que a LIBRA é um exemplo de “iniciativa privada”, a realidade mostra que a ausência de mecanismos de transparência e responsabilidade permitiu que um pequeno grupo extraísse valor de milhares de indivíduos, muitos dos quais motivados por lealdade política.
O legado desse episódio é duplo. Para a população argentina, serve como um alerta sobre os riscos de criptomoedas não regulamentadas e da confiança cega em figuras públicas. Para a comunidade global de criptoativos, reforça a urgência de frameworks regulatórios que equilibrem inovação e proteção ao investidor – um debate que a retórica libertária de Milei insiste em ignorar.
Enquanto as investigações avançam, a LIBRA permanece como um marco de como a combinação entre influência política, tecnologia e ganância pode catalisar crises que transcendem fronteiras digitais, afetando economias reais e destruindo sonhos individuais em escala massiva.
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Wladimir Crippa – administrador do grupo Bitcoin Brasil (fb.com/groups/btcbr); organizador da bitconf – bitconf.com.br (1ª conferência sobre Bitcoin realizada no Brasil, desde 2014); ex-assessor do Ministro da Ciência e Tecnologia (Celso Pansera/2016); atualmente membro da Comissão Temática de Tecnologia, Inovação e Transformação Digital do Conselho de Desenvolvimento Econômico Social Sustentável. CEO da Blockchain Brasil. E-mail: wladimir@wladimir.com.br